O nacionalismo ardente de Bruce Lee e as lágrimas de Mao Tsé-Tung: Um encontro inusitado

Maria Eduarda Kashmir

Como o artista marcial impactou a imagem dos chineses no ocidente e conquistou o prestígio do grande líder da revolução chinesa


O dia 20 de julho de 2020 marca os 47 anos da morte de Bruce Lee. Nascido Lee Jun-Fan em 27 de novembro de 1940 no Chinese Hospital em São Francisco, Califórnia, durante uma viagem de seus pais aos Estados Unidos, o legendário artista marcial, dançarino e filósofo tornou-se mundialmente conhecido por estrelar e dirigir filmes de Kung Fu.

Desde a juventude, Lee foi um nacionalista orgulhoso e expressivo, chegando por diversas vezes a envolver-se em brigas no St. Francis Xavier’s College onde estudava com outros alunos britânicos que frequentemente demonstravam um sentimento de superioridade em relação aos chineses. Ainda adolescente, também se envolveu em brigas contra gangues que extorquiam pequenos comerciantes em Hong Kong, sofrendo em decorrência disso, uma tentativa de assassinato. Fato que resultou em sua fuga para os Estados Unidos, onde foi morar em São Francisco, logo depois, mudando-se para Seattle. Finalmente concluiu os estudos e ingressou na Universidade de Washington onde cursou filosofia.

Lee abriu uma academia de artes marciais em Seattle com ajuda de seu amigo Taky Kimura, a Jun Fan Kung Fu. Em 64 mudou-se para Oakland onde abriu outra academia com James Yin Lee. James o apresentou ao torneio internacional de Karatê em Long Beach, para o qual Lee foi convidado a demonstrar seu famoso soco de uma polegada e a flexão sobre os dedos polegar e indicador. Durante o torneio, Lee foi descoberto por um produtor de Hollywood e chegou a atuar em alguns filmes e seriados de TV.

Insatisfeito com os papéis irrelevantes que recebia, com a frequente prática de “Yellow Face” nos filmes de Hollywood, e com o racismo expressivo por parte da indústria cinematográfica americana, Lee retorna à Hong Kong onde faria sua estreia como ator principal e em seguida como diretor e roteirista, conquistando uma legião de fãs e admiradores em toda a Ásia.

No entanto, um fato muito pouco conhecido é que entre essa legião de fãs do artista marcial estava o Grande Timoneiro, Mao Tsé-Tung. Também dotado de um grande sentimento de orgulho nacional, Mao compartilhava com Lee de seu nacionalismo latente. Mas, deixemos isso para um pouco adiante.

O fato é, que não há como ignorar o afiado teor nacionalista na obra de Bruce Lee.

Como no memorável “Fist of Fury“, um filme que se passa na Xangai ocupada pelo imperialismo nipônico. Logo depois do assassinato de seu mestre, a escola de artes marciais de Chen Zhen, personagem interpretado por Bruce Lee, recebe de lutadores japoneses uma placa de madeira com as inscrições “Sick Man of Asia” ou “ Homem doente da Ásia“, e, apesar da advertência sobre o uso de violência através das artes marciais, Chen não aceita a ofensa, deixando de lado as tradições pacifistas de seu mestre.

Sozinho, ele vai até a academia responsável pela provocação, onde luta com dezenas de karatekas experientes, derrotando-os. Com os punhos cerrados e fúria nos olhos, adverte com a célebre frase “Nós não somos homens doentes!” enquanto os japoneses rastejam amedrontados. Ao final da cena, Chen quebra a placa e obriga dois dos lutadores a engolirem, dizendo “dessa vez vocês engolem o papel, da próxima será o vidro.

Temos aí uma bela demonstração; dominando dezenas de inimigos com imensa aptidão e força física, e os fazendo — literalmente — engolir a provocação, não resta nenhuma dúvida ao espectador: De fato, não se tratam de homens doentes.

Há ainda outra cena submersa no vigor nacionalista de “Fist of fury“. Ao ser barrado de um estabelecimento na Xangai ocupada, Chen observa uma placa de aviso “Proibido Chineses e cachorros“, enquanto uma mulher e seu cachorro passam pelo portão. Um homem japonês do lado de fora sugere que caso Chen queira entrar, deve andar de quatro como o animal. Chen, furioso, leva três japoneses ao chão, e destrói a placa de advertência em pedaços com um golpe. Lee incorpora nessa cena, a humilhação do povo Chinês e a redenção através da resistência do seu personagem.

Ao macular o legado de seu mestre assassinado, o protagonista de “Fist of Fury” representa o herói cujo fardo é um sacrifício. Demonstrando que às vezes, é necessário violar a ordem para perpetuá-la.

Em “The Big Boss” Bruce Lee incorpora em Cheng Chao-An uma perspectiva de classe. O brilhante diretor Lo Wei nos introduz em uma história real, sobre imigrantes chineses numa fábrica de gelo na Tailândia. Cheng carrega consigo um medalhão de jade — símbolo do juramento feito à sua falecida mãe, de que jamais lutaria de novo. Ele se depara a todo momento com inúmeras injustiças, e prestes a reagir, recua, o que provoca um desconforto em quem assiste. Contudo, os eventos não param de desenrolar-se em razão de sua promessa.

Ao ser contratado, Cheng presencia péssimas condições de trabalho, sofrendo inclusive, agressões físicas. Em uma das cenas, um supervisor faz ameaças com uma vara de madeira enquanto outro funcionário ri “Ele pensa que é o dono“.

Depois de serem chamados à uma reunião com o patrão, alguns funcionários desaparecem misteriosamente. Sem obter explicações sobre o paradeiro deles, os trabalhadores tentam iniciar uma greve, mas são cercados por seguranças. Cheng finalmente quebra a promessa, dando início à tão esperada cena de luta protagonizada por ele. Logo após intimidar dezenas de capangas, ele é convidado a negociar com o gerente e acaba sendo promovido, o que a princípio é visto pelos outros empregados como uma chance de encontrar os desaparecidos, assim como de melhorias nas condições de trabalho.

Porém, a tentativa de conciliação é uma farsa.

Enquanto Cheng investiga o sumiço de seus companheiros, os outros funcionários passam a pensar que ele havia os traído. Finalmente, Cheng consegue ligar os proprietários da fábrica aos desaparecimentos, e à outros crimes como o tráfico de drogas e mulheres, mas ele acaba sendo descoberto, e seus amigos e familiares mortos em retaliação.

Pouco a pouco Cheng Chao-An, até então um simples trabalhador que fora impedido de lutar, transforma-se num herói irredutível. Ao som de Pink Floyd, ele vai até o “Big Boss” perseguir sua vingança.

É notável também no filme, a forma como os operários interagem entre si, com respeito mútuo, cooperação, legítima amizade, e respeito às mulheres. O que contrasta com o estilo de vida financiado pelos sócios da fábrica; regado à exploração sexual, interesses individualistas, e o abuso constante dos trabalhadores.

Parte desses aspectos nos filmes de Bruce Lee, deve-se ao cineasta Lo Wei que dirigiu grande parte dos filmes estrelados pelo astro. Entretanto, Lee sempre fez questão de representar personagens que exaltassem o povo chinês, e alguns desses filmes foram escritos unicamente para que ele atuasse. Como no caso do seu primeiro — e último — grande papel, na parceria da gigante asiática Golden Harvest com a Warner Bros em “Enter the Dragon”, que o tornou ainda mais famoso e mudou radicalmente a forma como os chineses eram retratados nos filmes ocidentais.

Mas Bruce Lee não se limitou a ser exímio artista marcial e ótimo ator, ele foi também excelente diretor e roteirista, sempre deixando claro em seus filmes — por vezes muito sutilmente — o seu caráter nacionalista e antirracista.

Em “The way of the Dragon“, filme dirigido e estrelado por ele, seu personagem Tang Lung viaja para Roma a fim de auxiliar uma família contra gangues que extorquiam seu pequeno comércio, numa clara referência ao passado de Lee em Hong Kong .

Na primeira cena, o personagem recém chegado na Europa olha desconfortável para a câmera, enquanto uma italiana o encara curiosa, estudando suas feições, como se fosse uma criatura exótica em exposição. Lung expressa impaciência, evitando-a; o caráter racista retratado na cena fica ainda mais nítido quando o marido da senhora a puxa para longe dali.

Lee também propõe um contraste visual entre asiáticos e europeus. Tang Lung usa vestes tradicionais em oposição às roupas casuais dos italianos, inicialmente até reforça alguns estereótipos dos chineses, mostrando um personagem quieto, calado, sem modos, e que aparenta fraco e atrapalhado. Mas, à medida que o filme passa, Lung desconstrói esses aspectos revelando-se um homem forte, ágil, gentil e invencível.

Há ainda, nesse filme um diálogo intrigante; Durante um passeio por pontos turísticos, Lung lembra Hong Kong, até então colônia britânica, e com ar de desprezo alega que “os bairros pobres de lá são como as ruínas de Roma.” — A miséria das colônias, são os escombros da Europa.

Com tudo isso, não é de se admirar que Mao Tsé-Tung tenha tido Bruce Lee como um herói.

Segundo a matéria de Raymond Zhou (China Daily), em 1974 depois de ser aconselhado pelos médicos a reduzir a leitura por causa de um diagnóstico de catarata, Mao voltou-se ao cinema. Primeiro, com filmes biográficos e depois passando às produções de Hong Kong. O então Ministro da Cultura Liu Qintang ficou encarregado de viajar até Hong Kong em busca de filmes. Entre os vários filmes emprestados pelo produtor Run Run Shaw, três eram de Bruce Lee que até então eram desconhecidos na China continental devido ao auto-isolamento.

Liu assistiu todos os filmes ao lado de Mao, que ficou bastante empolgado e irrompeu em elogios. Enquanto assistia “Fist of Fury” pela primeira vez, Mao exclamou emocionado “Bruce Lee é um herói!” enquanto explodia em lágrimas.

A matéria conta que Liu não conhecia nenhum outro filme que o Presidente havia visto três vezes. E quando chegou o momento de devolver os filmes ninguém se atreveu, para caso Mao quisesse vê-los novamente. Dois dos filmes foram devolvidos somente quando ele já era paciente terminal.

Numa época em que chineses eram representados em filmes ocidentais por homens raquíticos, pintados de amarelo com olhos esticados, e dentes e rabos de cavalo, Li Xiaolong, ou Bruce Lee, conseguiu destroçar o estereótipo ocidental dos chineses, como o “Homem doente da Ásia”. Estereótipo esse que ele abertamente rechaçava.

É lamentável que sua morte tenha acontecido antes da liberação de Hong Kong como colônia inglesa, e lamentável também que não tenha visto o embaixador Chinês em Londres, Li Xiaoming, reagir à pressão britânica para que a China extradite separatistas de Hong Kong dizendo que “Longe se vão os dias em que Hong Kong esteve sob o domínio colonial britânico”. Lee nunca escondeu seu entendimento de Hong Kong como território pertencente à China e ao povo chinês, e sua completa rejeição aos colonizadores da Europa.

Bruce Lee celebra a força, a reação, e a retomada do orgulho de um povo antes humilhado. Enquanto Mao discursava na fundação da República Popular da China em 49, afirmando que o povo chinês havia “Se erguido”, nos anos 70, Bruce Lee enfatizava isso expressando-se através do cinema enquanto ator, diretor e roteirista, e através do Kung Fu e da luta, enquanto artista marcial. Mao nunca chegou a divulgar seu apreço pelo artista publicamente, e se tivesse feito, Lee teria tornado-se rapidamente um herói nacional. Mas — e aqui me atrevo a parafrasear o autor da matéria do China daily — como Mao observou, Lee não necessitava disso, seu orgulho e filosofia perpassa todas as culturas, seus filmes trazem os aspectos do bem e do mal, do ying e yang, onde Lee representava o bem invariavelmente. E isso é algo que todos os seres humanos podem celebrar em comum.

A memória de Bruce Lee assimila o espírito chinês em seu estado mais elevado — sagaz, flexível e que não se verga perante hostis adversários. A personificação de uma China pela qual Mao liderou as massas.

Em tempos nos quais inimigos sorrateiros e oportunistas atacam o país e seu povo, tentando exercer domínio sobre seu território, ou esforçando-se para fazer ressurgir das cinzas o estereótipo racista do “Homem doente da Ásia”, é necessário mais do que nunca, lembrar quem foi Bruce Lee.