Por Diego Pautasso, Gaio Doria e Tiago Soares Nogara
A China difere das demais nações no mundo por se configurar um Estado-civilização. Um Estado-civilização, em sua acepção mais simples, é um país que representa não apenas um território histórico, um grupo étnico e linguístico, mas uma civilização única por si só. Se diferencia do conceito de Estado-nação ao explicar suas diversas dimensões, ultrapassando os valores universais – liberais – estabelecidos como padrões na era dos Estado-nação. No caso de Xinjiang, a região turcófona e islamizada conta com uma história registrada no âmbito da civilização chinesa que remonta há mais de 2000 anos, quando a antiga Rota da Seda ligou a China à Europa.
Com o sucesso do caminho de desenvolvimento chinês, a região de Xinjiang também experimentou taxas expressivas de crescimento. O Ocidente, no entanto, enxerga na região autônoma um ponto de inflexão a ser explorado como elemento desestabilizador do sistema político chinês. A questão de Xinjiang, que compreende diversas dimensões e complexidades, foi internacionalizada para se enquadrar no âmbito das disputas geopolíticas entre os EUA e a China. Assim, devemos considerar para compreender e avançar o debate os seguintes pontos:
a) A revolução que conduziu o Partido Comunista ao poder na China ocorreu em 1949. De caráter antifeudal e anti-imperalista, desde o princípio enunciou o imperativo da reconstrução nacional, vide o papel do Partido Comunista no confronto contra a ocupação japonesa, ao longo da Segunda Guerra Mundial. Assim, ciente do caráter multiétnico do país e visando recompor a integridade territorial, ainda em 1954 o Congresso Nacional do Povo autorizou sistema de autonomia regional para as minorias étnicas na Constituição da República Popular da China. A Região Autônoma Uigur de Xinjiang foi estabelecida em 1955.
b) À época da revolução, territórios como os de Xinjiang e o Tibete sequer possuíam ferrovias. O desenvolvimento das regiões marcadas pela presença de minorias éticas é, desde então, uma realidade inquestionável: em sua totalidade, o PIB aumentou de 5,79 bilhões de RMB, em 1952, para 3,06 trilhões, em 2008. Em 1985, o número de pessoas em situação de pobreza nessas regiões era de cerca de 40 milhões de pessoas; em 2008 já era de 7,7 milhões. Apenas em Xinjiang, o PIB aumentou em mais de 86 vezes entre 1995 e 2008, saltando de 1,2 para 420,3 bilhões de RMB, com crescimento anual acima de 8% [1]. Tamanho crescimento resultou em cifras que ultrapassaram 1 trilhão de RMB, em 2017, como demonstrado no gráfico abaixo [2].
c) Desde a década de 1990 foram criados o World Uyghur Congress (WUC), financiado pelo National Endowment of Democracy (NED), e o East Turkistan Islamic Movement (ETIM), com apoio da CIA, ambos com reivindicações separatistas na região de Xinjiang. Desde 2002, a ONU classificou oficialmente o ETIM como uma organização terrorista ligada à Al Qaeda. Aliás, milhares destes terroristas vincularam-se ao ISIS durante a guerra na Síria.
d) Inegavelmente, a China é um país complexo. São 56 etnias, 1,4 bilhão de pessoas e mais de 9 milhões de km² em virtuoso processo de modernização – incluindo o mais notável processo de mobilidade social da história (apenas entre 1978 e 2017, 740 milhões de pessoas de áreas rurais foram retiradas de situação de pobreza). Obviamente que, ainda assim, se entrelaçam desigualdades e assimetrias sociais, regionais e étnicas – muitas de natureza secular cuja superação será intergeracional.
e) Além dos desafios domésticos, a China enfrenta toda sorte de tensionamento com a superpotência. Washington tem trabalhando sistematicamente para não perder o controle sobre as estruturas hegemônicas de poder. Como a China é o principal poder desafiante, os EUA atuam apoiando o separatismo (Taiwan, Tibet, Xinjiang), estimulando conflitos no Mar do Sul da China e fomentando posturas anti-China pelo mundo. Tudo isso ao passo em que reforça sua presença militar no pacífico (Guam, Filipinas, Coreia do Sul, etc.), sabota a estabilidade política do sistema de governo chinês (de Tiananmen até Hong Kong) e recrudesce a Guerra Comercial. É irônico que críticas sobre a região autônoma de Xinjiang partam dos EUA, país marcado por um racismo estrutural e excludente, possuidor da maior população carcerária do mundo. Em pleno século XXI, o país da liberdade coleciona prisões como Guantánamo, black sites e campos de concentração – que destroem famílias, sem qualquer escrúpulo, para “resolver” o problema de imigrantes em situação irregular.
Em suma, a China investiu em Xinjiang como em qualquer outra parte de seu território, modernizando suas cidades, construindo 21 aeroportos, estradas, escolas, hospitais, ferrovias, entre outros tantos exemplos. Xinjiang está em sintonia com as últimas tendências da modernidade. Não por acaso, a China tem atuado nitidamente para conformar um projeto chinês de globalização a partir da Nova Rota da Seda, liderando processos de integração regional (OCX e ASEAN+1) e reconfigurando um sistema sinocêntrico.
Nesse sentido, basta observar o mapa [2] para perceber que Xinjiang é uma peça-chave nesse projeto. A maioria das rotas que transportam mercadorias entre a China e a Europa passam por Xinjiang. Também existem muitos oleodutos / gasodutos da Ásia Central que passam por Xinjiang para alimentar a economia industrial da China. É por isso que o interesse dos Estados Unidos resta exatamente em desestabilizar Xinjiang. Os estragos na economia chinesa podem ser catastróficos.
Referências:
[1] LIANGQI, Lin. The strength of democracy: how will the CPC march ahead. Beijing: China Intercontinental Press, 2012.
[2] https://worldaffairs.blog/2019/07/05/xinjiang-and-uyghurs-what-youre-not-being-told/