Caetano, Jones, Losurdo e a contra-história do anticomunismo: caminhando contra os ventos da reação

Samuel Praciano (estudante de Letras e militante da Organização A Marighella – CPR)


Recentemente, em entrevista a um programa da Rede Globo (“Conversa com Bial“), o músico popular Caetano Veloso afirmou não ser mais um “liberalóide” como era há dois anos, passando então a respeitar, ou pelo menos entender melhor, as experiências socialistas. De acordo com Caetano, uma mudança menos por conta da atual conjuntura brasileira e mais por leitura de Domenico Losurdo, autor marxista italiano, que conheceu através do militante comunista, historiador e youtuber, Jones Manoel. Caetano ainda afirmou que não equaliza mais nazismo e comunismo. O que era para ser um grande passo intelectual, como ele mesmo afirma, e um mero comentário, uma vez que a intenção principal da entrevista era a divulgação de seu documentário “Narcísio em Férias“, se tornou um debate de proporções colossais sobre um suposto neostalinismo, algo que segue a dominar as redes sociais. E isso, infelizmente, diz muito sobre o abismo que nos encontramos.

O livro citado por Caetano, que o fez ter esse “desenvolvimento intelectual”, como ele mesmo afirmou, foi a “Contra-história do Liberalismo“. Por essa obra, Losurdo inegavelmente tornou-se um autor muito importante para a análise rigorosa da ideologia liberal reunindo por períodos históricos, os políticos e filósofos que reivindicaram o liberalismo e mostrando suas contradições dentro de seus próprios escritos. Como por exemplo, os discursos pró-democracia e de liberdades individuais em conjunto com a defesa da escravidão, da negação do sufrágio universal, do colonialismo e da superioridade racial. Nessa lista temos Adam Smith, David Hume, Tocqueville e os pais fundadores dos EUA. Por isso que o livro se chama Contra-história e não apenas História do Liberalismo, porque é uma forma de chamar a atenção sobre esses aspectos que foram ampla e injustamente ocultados.

E essas contradições não são apenas marcas de um passado distante, afinal ainda ecoam nos dias atuais. Foi apenas nos anos 60 que os países africanos conseguiram suas independências de países liberais como a França e a Inglaterra. Foi a custo de muito sangue derramado que negros nos EUA, no mesmo período, conseguiram o direito ao voto e aos direitos civis. E foi o mesmo EUA que patrocinou golpes militares em quase toda a América Latina em nome da “democracia” e do “perigo comunista”. Bush, já no século XXI usou as instituições americanas para justificar uma invasão militar em busca de armas de destruição em massa no Iraque, algo que depois se revelou uma grande falsificação, e nem por isso é visto como um ditador. Obama, seu sucessor, o mesmo que ganhou o Nobel da Paz, o primeiro a ganhar mesmo estando em guerra durante todos os dias de seu governo, foi o responsável por autorizar 26.171 bombardeios em 2016. A Europa, berço da denominada civilização ocidental, joga todo dia no mar seus imigrantes ilegais que tentam entrar no continente, após seus países estarem em profunda crise devido séculos de humilhação justamente pelos colonizadores europeus.

A tese do “fim da história”, escrita pelo liberal Fukuyama, defendia que após o fim da União Soviética, não estava apenas sendo visto o fim da Guerra Fria, mas o ponto final da evolução ideológica dos seres humanos por meio da vitória da democracia liberal ocidental. De certa forma, dialoga com a famosa frase de Margaret Thatcher, na qual afirma que ‘não há alternativa’ senão o regime democrático-liberal. Tal expressão tornou-se amplamente aceita, afinal é mais fácil imaginar o fim do mundo e um apocalipse do que o fim do capitalismo e de sua mais célebre forma de regime político. Losurdo, no entanto, com muito rigor teórico, ao longo de uma vastíssima obra, desconstrói esses mitos do ocidente como um lugar de vanguarda civilizacional. Contrapõe ainda o método estúpido da “Teoria da Ferradura“, uma análise cega das experiências socialistas do século XX, bem como contrapõe a errática concepção de Totalitarismo tão propagada por Hannah Arendt, enfim, Losurdo confronta conceitos liberais que contam a História da Humanidade a partir da ótica dos vencedores da Guerra Fria. E Losurdo faz isso sem cair em dogmatismo e em leitura acrítica da União Soviética, por exemplo. Losurdo faz isso com uma capacidade singular, o bastante suficiente para fazer tremer as estruturas liberais tão difundidas na academia universitária nacional e nos espaços das artes em nosso país.

É por isso que atacam Losurdo. E atacam de modo rasteiro, como em veiculações de imprensa nos quais o autor italiano é chamado de “stalinista“, algo que apenas prova que de fato não leram sua obra e que desejam inviabilizar o debate com argumentação ad hominem. É a velha tática sofista de interditar o debate com a destruição do debatedor. Afinal, rebaixar é sempre mais fácil do que debater.

É lamentável o modo como jornalistas conceituados, professores de grandes instituições acadêmicas reagiram, inclusive de certa forma até desesperadamente, desqualificando não apenas Losurdo, mas Caetano (“Stalin de Ipanema”) e Jones Manoel, marginalizando-o e colocando-o numa categoria de não-intelectual e de “treteiro” de redes sociais, afirmações que revelam racismo por detrás de tamanhas adjetivações rasteiras. De outro modo, tal empenho no descrédito mostra que o trabalho de Jones tem realmente incomodado. Há uma frase de Silvio Almeida, outro importante intelectual negro, que sintetiza muito bem a forma como a situação ocorreu – “Pode-se criticar tudo, menos o liberalismo”. 

Urge ressaltar que estamos vivendo a pior crise da história de nosso Brasil, pois relaciona crise sanitária, com crise econômica, política e social. Temos mais de 130 mil mortos pela pandemia, 13,7 milhões de desempregados, o país está voltando ao mapa da fome e a ter uma enorme inflação nos preços de alimentos, além do contínuo avanço da extrema direita. Qual é, portanto, a justificativa histérica de se preocupar mais com Stalin do que com todos esses atuais problemas? Simples! É que o discurso anticomunista está na raiz das atrocidades que estamos vivenciando! Além de ser responsável, por exemplo, pelo projeto de lei de Eduardo Bolsonaro que busca criminalizar a ideologia socialista, igualando a mesma com o nazismo, e que seria responsável pelo fechamento de partidos institucionais (e não-institucionais) de esquerda, assim como pela perseguição ainda maior de movimentos populares e das mídias alternativas.

Por isso, ainda que com certo tardar, não podemos falhar em não prestar a nossa solidariedade ao camarada Jones Manoel. Igualmente, prestamos solidariedade a esse grande brasileiro, Caetano Veloso, e elogiamos por seu nobre exercício de humildade intelectual ao admitir que não pensa mais conforme antes. Antes mudar aos 78 anos do que viver reproduzindo as mesmas ladainhas liberais até o fim da vida, ainda que a realidade prove diariamente o oposto do proselitismo “liberalóide”… Com ou sem lenço, com ou sem documento, e mesmo com divergências aqui e acolá, caminhando contra os ventos da reação, nós vamos com Caetano, Jones e Losurdo.