As referências históricas do enredo da Mangueira (2019)

Por Rodrigo Oliveira (militante da Organização A Marighella – CPR/Coluna do Rio de Janeiro, apaixonado por samba e pelo Vasco da Gama)

 

Diante de tudo que vem ocorrendo, principalmente da onda anti-intelectual e de um grotesco revisionismo e negacionismo histórico, resolvi expor algumas figuras presentes no enredo da Mangueira. Figuras já distanciadas da historiografia convencional. O enredo tem justamente o objetivo de evidenciar o grande protagonismo dos oprimidos em alguns processos e acontecimentos históricos do país, na qual a classe trabalhadora não teve prestígio para a historiografia dominante, sobretudo, mulheres, indígenas e negros.

“Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasil que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa as multidões”
A primeira parte retrata justamente o que o enredo quer evidenciar, a história não contada, seja do país ou os próprios heróis da escola. Leci Brandão e Jamelão são ilustres figuras da escola Verde e Rosa.

“Brasil, meu nego Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra”
O Brasil é um país forjado na escravidão, no sangue de muita gente que foi pisada, torturada e morta pela cor da pele e pelo domínio, não só da submissão escravista, colonial, e tão logo classista, na qual há uma clara relação de força e construção de uma mentalidade e narrativa que legitime o poder daqueles que os dominaram. Após a libertação, protagonizada pelos negros, esses, sem formação e sem condições, ficaram à margem da sociedade, e historicamente, foram subalternizados.

“Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500
Tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato”
“História pra ninar gente grande” evidencia de fato aquilo que a historiografia de cunho dominante esconde. 1500 não foi descobrimento ou uma simples conquista, foi uma clara invasão em prol dos interesses dos colonizadores e saqueadores, que para além da mão de obra indígena, em sua maioria, escravizaram consciências, destruíram crenças e ritos. O sangue retinto pisado é o sangue dos indígenas, das tribos avassaladas pela violência colonial. Ao se referir em “mulheres, tamoios, mulatos, eu quero um país que não está no retrato”, o enredo busca mais uma vez exibir o protagonismo daqueles que foram fundamentais na tentativa de libertação dos escravos ou por outros processos de independência e emancipação do povo.

“Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati”
Dandara, esposa de zumbi, foi uma escrava guerreira que se rebelou contra a violência imposta pela escravidão. Cariri faz alusão aos índios cariri que sofreram com os abrolhos provenientes da invasão colonizadora portuguesa. A seguir, o samba ironiza a narrativa oficial que a libertação do escravos tenha vindo das mãos da Princesa Isabel; os escravos conquistaram sua “emancipação” com muita luta, sangue, rebeliões e resistência. Isabel legalizou a abolição em decorrência de interesses econômicos ali contidos, e sobretudo pelo medo dos escravos se organizarem em maiores rebeliões abolicionistas, que poderiam acabar por colocar em cheque até mesmo a concentração de terras.
O verso posterior se refere ao Dragão do Mar, Francisco José do Nascimento, que foi um lutador abolicionista no estado do Ceará. Chico da Matilde como também ficou conhecido, se recusava a transportar para os navios negreiros os escravos vendidos para o Sul. Aracati fica localizado em Fortaleza, onde Chico nasceu.

“Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”
Os “Caboclos de julho” tangem quanto ao processo de emancipação baiano. O “Caboclo” é símbolo da independência brasileira na Bahia; julho se refere a consolidação da independência nacional na Bahia, que se deu no dia 02 de Julho de 1823, quando se concretizou por óbvio, a expulsão dos portugueses no território baiano.
Os anos de chumbo tocam ao dizer sobre os 21 anos de ditadura militar; uma ditadura que nasceu dos interesses do imperialismo norte-americano, principalmente quando João Goulart anuncia as reformas de base, que projetavam um país voltado para uma possível social-democracia com projeto nacional de desenvolvimento econômico, embora fosse algo complexo dentro de uma perspectiva de Guerra Fria. A ditadura torturou, matou e liquidou inúmeros opositores, jornalistas e estudantes.
“Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês…”, talvez seja o verso de maior impacto do samba. Maria Felipa foi uma heroína negra do processo de independência na Bahia. Era uma liderança importante entre homens e mulheres, que auxiliou na construção de trincheiras. Além disso, armava seu grupo com peixeiras e galhos de cansanção. Seu grupo ainda participou de inúmeros incêndios de embarcações portuguesas.
Mahins alude ao povo Mahi, mas essencialmente denota para a figura de Luísa Mahin, mãe de Luís Gama. Luisa organizava e ajudava a organizar rebeliões, levantes de escravos na província da Bahia. A Revolta dos Malês foi uma das insurreições de maior importância durante aquele período. Um levante de escravos em Salvador, sendo a maior rebelião negra contra a escravidão da história das Américas. Malê tem sua origem no termo “imalê”, que provém do iorubá e tem como significado “muçulmano”. A maioria desses escravos tinham entendimento sobre Iorubá, para além disso, só escravos africanos participaram dessa revolta, os brasileiros, conhecidos como crioulos, não colaboraram. Os avós maternos de Carlos Marighella, e outros parentes por parte de sua mãe, Maria Rita do Nascimento, segundo levantamentos biográficos, eram negros de origem haussás e teriam participado da histórica revolta. 
Marielle, assassinada em março do ano passado, até os dias atuais não teve seu crime político solucionado. Marielle era uma voz de esperança para muita gente, pois defendia os direitos humanos, inclusive de policiais militares. Provavelmente assassinada por quem domina politicamente o Rio de Janeiro e o Estado Brasileiro hoje, as milícias.
Marielle, bem como Mahin, é uma figura que a história desse país dominado por gente ruim e forjado na escravidão, não mostra.

É a história que o samba da Mangueira quer ver no retrato. O retrato de um país e de um povo, que desconhece sua origem, sua dor e sua luta. Marielle completará um ano morta, no próximo 14 de março. Que o enredo da Verde e Rosa leve a reflexão do que somos, de onde viemos e pra onde estamos indo.

Marielle, presente! Marielle vive!

Enredo: Manuela Oiticica, Tomaz Miranda, Ronie Oliveira, Márcio Bola, Maná, Deivid Domênico, Danilo Firmino
Intérprete: Marquinho Art Samba
Carnavalesco: Leandro Vieira