Afeganistão, onde as pessoas são o que menos interessa

Por Antônio Abreu
Engenheiro Químico, professor de História Contemporânea e ex-consultor do Ministério da Saúde em Portugal 

 

Falar do Afeganistão, 16 anos depois de ainda estarmos a espera da verdade sobre o massacre das Tores Gêmeas, é um percurso de dor e de uma consciência que se vai construindo, através das peças de um quebra-cabeça onde as pessoas parecem ser o que menos interessa.

Mas também constitui uma oportunidade para recuperar hoje elementos essenciais da situação no Afeganistão para se compreender como tudo surgiu e porque muito ainda se mantém.

A recente série de atentados terroristas no Afeganistão

Há duas semanas, no dia 29 de janeiro, um ataque suicida perpetrado por cinco atacantes, contra um posto militar em Cabul, próximo da principal academia militar do país, deixou 11 soldados mortos e 15 feridos. Quatro dos terroristas foram mortos ou fizeram-se explodir e um quinto terrorista foi preso. O ataque foi reivindicado pelo Estado Islâmico (EI, Al-Qaeda e Talibans interpenetram-se em um jogo de espelhos comandado por serviços secretos ocidentais que os criaram e/ou assessoraram).

Foi mais um de uma série recente de ataques no Afeganistão. No sábado anterior, dia 27, outros terroristas usaram uma ambulância-bomba para matar 103 pessoas e ferir outras 235. O chefe da missão da ONU no Afeganistão, Tadamichi Yamamoto, classificou o ataque como uma “atrocidade”. No dia 24, um grupo tinha atacado a sede da ONG “Save the Children” em Jalalabad, provocando três mortos e 24 feridos. No dia 20, um ataque armado ao luxuoso Hotel Intercontinental de Cabul causara 19 mortos, 14 dos quais estrangeiros, provocando um grande incêndio em vários andares do prédio.

Para compreender esta agressividade assassina crescente, o jornalista afegão Masud Waganas referia, há dias, existirem fortes rivalidades geopolíticas entre poderes, imperialistas e hegemonicos, relativos aos recursos naturais do Afeganistão e às rotas comerciais e de trânsito, atendendo à localização geoestratégica do país, tendo essas rivalidades crescido de forma significativa nos últimos anos.

O legado do Império Britânico, o regime democrático e socialista, a intervenção soviética e o regime Taliban

Desde o século 18 a Inglaterra deteve o monopólio da produção de ópio na Índia, que se estendeu depois ao Afeganistão. No Afeganistão a resistência à ocupação culminou na primeira tentativa dos ingleses de destronarem o rei Dost Mohammad. No início de 1842 os ingleses foram forçados a deixar Cabul e, na retirada para Jalalabad, deixaram na neve 17 mil corpos de militares e auxiliares. A Inglaterra resolveu a questão cortando os acessos do Afeganistão ao mar, retirando-lhe o território depois das cordilheiras do Hindu Kush.

Preocupada com o vizinho Império Russo, a Inglaterra realizou novas intervenções e, sem consultar os afegãos, acabou assinando com os russos uma convenção, em 1907, que retirou parcelas ao país e resultou no afastamento dos Pashtuns, que integravam o Afeganistão desde tempos remotos.

Cerca de 90 anos tarde, precisamente entre as rebeldes tribos Pashtun, nasceu o movimento Taliban, que, em poucos anos, ganhou a guerra civil e se estabeleceu no poder no Afeganistão. Desalojado do governo de Cabul pela intervenção americana, ainda hoje dominam boa parte do território afegão e mantêm em cheque o governo de Karzai e os seus aliados americanos.

Em 22 de novembro de 1917, menos de uma semana após a Revolução Bolchevique, o governo soviético denunciou e tornou públicos os tratados assinados pelo governo czarista, anulando os entendimentos entre britânicos e russos acerca do Afganistão. O rei Amanullah declarou a independência do país em relação ao império britânico em 1915 e tentou fazer regressar os Pashtun ao país, mas os ingleses reagiram com mais uma guerra anglo-afegã (a terceira em 80 anos) e o objetivo não foi atingido. Face às tentativas de reunificação pacífica, os britânicos, em 1920, enviaram uma força conjunta de dois mil ingleses e indianos que mataram quatro mil habitantes de aldeias no noroeste.

O rei tornou-se um liberalizador: reforçou o exército; aboliu a escravatura e os trabalhos forçados; defendeu maiores liberdades para as mulheres, desencorajou o uso do véu e a opressão feminina; e introduziu oportunidades educativas para as mulheres.

Em 1924 ocorreram violentas revoltas dos islâmicos conservadores na cidade fronteiriça de Khost, que foi dominada pelo exército afegão. A revolta foi uma reação às reformas sociais de Amanullah, particularmente a educação pública para meninas e uma maior liberdade para as mulheres. O historiador afegão Abdul Samad Ghaus escreveu em 1988: “A Grã-Bretanha foi vista como culpada no caso, manipulando as tribos contra Amanullah na tentativa de provocar a sua queda”. Em 1929 grandes revoltas das tribos conservadoras levaram à queda do rei, com a suspeita geral de que os ingleses estavam por trás disso. 

A intervenção norte-americana começa a ocorrer após a Segunda Guerra Mundial, em 1950, a partir da Diretiva 68 de Segurança Nacional onde se afirmava que a URSS tinha o “desígnio do domínio do mundo”. Em 1956 os EUA construíram em Kandahar um aeroporto internacional que servia para lançar aviões responsáveis por bombardeiros para a eventualidade de um confronto com a URSS. No início dos anos 70 a CIA garantiu a retaguarda dos radicais islâmicos até ao início de 1973.

Entretanto, no Afeganistão, em 1978, ocorreu uma revolução dirigida pelo Partido Democrático Popular do Afeganistão (PDPA), comunista. Em agosto de 1979, um relatório classificado do Departamento de Estado afirmava: “os interesses maiores dos Estados Unidos (…) serão satisfeitos com o desaparecimento do atual regime afegão, apesar de quaisquer contratempos que isso possa significar para as futuras reformas sociais e econômicas no Afeganistão”. 

Zbigniew Brzezinski, assessor de segurança nacional do presidente Carter, admitiu, após a guerra contra os soviéticos, que a CIA fornecia ajuda secreta aos Mujahideen afegãos seis meses antes da invasão soviética. E salientou que a intenção dos EUA ao fornecer essa ajuda era “atrair os russos para a armadilha afegã”. No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira, afirmou ter escrito ao presidente Carter: “agora temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietnã”. A intervenção soviética no Afeganistão, no dia 26 de dezembro de 1979, a pedido do governo afegão, envolveu as forças soviéticas no apoio ao governo marxista do PDPA contra os fundamentalistas islâmicos, principalmente os Mujahideen.

Após a intervenção, os Estados Unidos foram rápidos em fornecer armas aos Mujahideen. Em fevereiro de 1980, o Washington Post informou que eles estavam recebendo armas provenientes do governo dos EUA. Os montantes foram significativos: 10 mil toneladas de armas e munições em 1983, que foram crescendo e atingiram 65 mil toneladas 1987, de acordo com Mohammad Yousaf, general paquistanês que supervisionou a guerra secreta de 1983 a 1987. Milton Bearden, chefe da estação da CIA no Paquistão de 1986 a 1989, que foi responsável por armar os Mujahideen, comentou: “Os EUA estavam lutando contra os soviéticos até o último afegão”.

Estima-se que os EUA e a Arábia Saudita deram 40 mil milhões de dólares em armas e dinheiro aos Mujahideen fundamentalistas ao longo da guerra. O dinheiro foi canalizado através do governo do Paquistão, que usou algum dele para criar milhares de escolas religiosas islâmicas fundamentalistas (madrassas) para as crianças refugiadas afegãs que inundaram o país. Estas tornaram-se as instituições de formação para os Talibans.

Em maio de 1988 a União Soviética começou a retirada das suas tropas do território afegão, uma retirada que só completou em fevereiro de 1989. Porém, mesmo após a retirada, a guerra civil continuou no país até os rebeldes tomarem Cabul, em abril de 1992, assassinando o presidente deposto, Mohamed Najibulah, que tivera o apoio dos soviéticos.

O país passou a ser uma república islâmica e, no ano seguinte, uma assembleia nacional, composta por várias facções rivais, líderes tribais e religiosos, aprovou a criação de um novo parlamento. Esta união entre as várias facções durou pouco tempo. Violentas disputas internas favoreceram a ascensão de uma nova força política, os Talibans, grupo fundamentalista islâmico financiado pelo Paquistão. A partir daí foram anos de destruição do país, da sua cultura, dos direitos dos cidadãos, de assassinatos em massa que conduziram o país ao que hoje existe: um país de privações alimentares; de habitação, saúde, e de direitos democráticos frageis; com regras rígidas para as mulheres e destruído por sucessivas guerras.

As potências ocidentais mantiveram-se serenas. Para elas o importante tinha sido a queda de um regime alinhado com a URSS e a saída desta do país. Assistiram a anos de uma loucura indescritível e os EUA só lá entraram em 2001 por razões relacionadas com os seus interesses econômicos de exploração das riquezas naturais e estratégicos de expansão para leste.

O regime socialista e as transformações no Afeganistão (1978-1992)

Atendendo ao que fui estudando nestes anos, de entre as diferentes narrativas sobre este período subscrevo a de Dana Visalli, agricultora biológica norte-americana e comentadora de política internacional.

1. Legislação. Direitos.

O novo governo iniciou um programa de reformas que eliminou a usura, lançou uma campanha de alfabetização, eliminou a cultura do ópio, legalizou os sindicatos, estabeleceu um salário mínimo e diminuiu entre 20% e 30% os preços dos bens mais necessários, introduziu o ensino superior qualificado para os trabalhadores, aumentou os salários numa média anual de 26% e os salários mais baixos em 50%.

O Estado subsidiou, para os manter, os preços de bens básicos, como a gasolina, o gasóleo, o querosene (“petróleo”) ou o açúcar, entre outros, como o trigo, a farinha e a lenha, passaram a ser vendidos a preços fixos.

Quanto aos direitos das mulheres, o regime socialista concedeu a permissão para não usar véu, aboliu o dote, promoveu a integração das mulheres no trabalho (245 mil trabalhadoras, sendo 40% dos médicos mulheres) e a alfabetização (o analfabetismo feminino foi reduzido de 98% para 75%); 60% do corpo docente da Universidade de Cabul passou a ser de mulheres, 440 mil mulheres passaram a trabalhar na educação e 80 mil participaram na campanha de alfabetização. O mesmo aconteceu na vida política. As mulheres passaram a ter, por lei, direitos iguais aos dos homens.

A taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos diminuiu de 38% em 1960 para 30% em 1988, 80% da população urbana passou a ter acesso aos serviços de saúde e a expectativa de vida, de 33 anos em 1960, passou para 42. Duplicou o número de camas hospitalares. Aumentou em 50% o número de médicos. Pela primeira vez foram criados jardins-de-infância e casas de repouso para os trabalhadores.

Foi realizada a cobertura hospitalar e de centros de saúde, mesmo nas regiões rurais remotas. O acesso aos cuidados de saúde era gratuito e os medicamentos eram vendidos a preços acessíveis, e para os mais pobres, os medicamentos eram entregues gratuitamente.

Centenas de milhares de pessoas foram alfabetizadas e 63% das crianças frequentaram o ano escolar em 1985.

Foi fundada a Academia de Ciências (1980), o Instituto Pedagógico (1987) e universidades em Balha (1988), Herat (1988) e Kandahar (1990). O Afeganistão enviou para o espaço o primeiro e único cosmonauta da sua história, Abdul Ahad Mohmand, em 1988. Também desenvolveu a cinematografia nacional.

Inicialmente a religião foi separada do Estado, mantendo-se a liberdade de culto. Mais tarde, foi criado um fundo estatal para a reparação e construção de mesquitas e anulada a expropriação de terras do clero. Em 1987, o Islã foi restaurado como a religião oficial do Estado.

2. Economia

Depois da revolução, o governo Taraki nacionalizou sectores estratégicos da economia e a realizou uma reforma agrária, que incluiu a formação de cooperativas agrícolas e a expropriação de terras dos latifundiários e sua distribuição entre os camponeses (o limite da propriedade privada da terra era de seis hectares).

A proporção de indústrias extrativistas e transformadoras cresceu de 3,3% do PIB em 1978 para 10% em 1985. No mesmo período, o investimento na indústria nacional ultrapassou em 80% todos os investimentos nos vinte anos anteriores à Revolução. Em 1984, os investimentos em setores estatais e mistos aumentou em 50%. Nesse ano foram criadas 100 novas empresas. Em 1984, as colheitas ultrapassaram significativamente as anteriores.

O reforço do setor público não excluiu o sector privado. No governo Karmal foi fundada a Câmara de Comércio e Indústria, com o objetivo de reunir representantes de capitais privados de mais de vinte associações de comerciantes.

Com a ajuda da União Soviética, no setor estatal da economia foram construídas cerca de 200 empresas, que passaram a fornecer a maior parte da produção global. Entre elas as empresas hidro-eléctricas e a Puli-Humri Naghlu, a fábrica de fertilizantes de azoto em Mazar-i-Sharif, uma empresa de panificação e outra de casas pré-fabricadas em Kabul.

A Checoslováquia abriu um alinha de crédito para ser construída uma linha de eléctricos em Cabul, equipadas minas de carvão e construída uma fábrica de cimento em Herat. Com créditos da Bulgária, foi construída uma grande exploração aviária, explorações de ovinos e de seda, outras empresas de aves, de produtos lácteos, tijolo e curtumes, e duas empresas para o sector das pescas. A Alemanha Oriental participou da criação de uma central telefónica automática em Cabul, que estabeleceu as linhas de comunicação e a ampliação do sistema de fornecimento de electricidade em várias cidades. A Hungria participou da construção de uma empresa farmacêutica.

Além do comércio com o campo socialista, no início dos anos 80, o volume de comércio entre o Afeganistão e o Japão tinha aumentado 33% e ambos os países criaram a empresa comercial conjunta Nichi-afegã Lda. Também o comércio com a Índia aumentou em 50%.

A guerra civil viria a provocar graves danos para a economia afegã. Só até 1985 o número de perdas tinha sido de 35 mil milhões de afegãos (moeda). Com os Talibans todos os avanços do país foram destruídos e regressou-se a um profundo obscurantismo.

2001: a invasão norte-americana

Em 2001, os EUA e a OTAN invadiram o Afeganistão, fizeram dele um protetorado, com dirigentes que, apesar de formalmente eleitos, foram sendo afastados em função dos “superiores interesses dos EUA”. O caso mais notório foi o de Hamid Karzai, que foi presidente do país entre 2004 e 2014, afastado por não aceitar o estatuto do Paquistão como base de grupos terroristas como os EUA queriam.

Os EUA ensaiaram para 2014 uma “saída” das suas tropas que acabou por se traduzir apenas em um outro modelo de protetorado, com os Talibans e outros grupos terroristas servindo aos interesses estadounidenses de desestabilização regional, incluindo em outros países, como a Síria ou as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central que fazem fronteira com a Rússia e a China.

Em 30 de setembro de 2014, o Afeganistão, os Estados Unidos e a OTAN assinaram um acordo para justificar formalmente a presença de um contingente militar limitado no estado da Ásia Central, após a retirada formal das forças internacionais. Uma força de seguimento de cerca de 12 mil soldados permaneceu em 2015 em tarefas de treino e apoio. No final do ano, cerca de 41 mil soldados da OTAN permaneceram no Afeganistão lutando contra a revolta de Talibans, ao lado de soldados e polícias afegãos, com o mandato de missão de combate da OTAN que terminaria em dezembro. Os EUA falharam redondamente o seu programa de formação de polícias e os afegãos passaram a confiar ainda menos neles.

Em agosto de 2017 Trump anunciou que continuará a guerra no Afeganistão. Como reação, um porta-voz Talibã condenou essa decisão e disse, citado pela France Press, que o grupo terrorista continuaria a jihad no país, afirmando ainda que o país se tornaria um “cemitério” dos EUA após a decisão de Trump de enviar mais tropas para o Afeganistão. Na sequência disso, o secretário de Estado dos EUA, Rex Tillerson, declarou que o movimento Talibã seria incapaz de alcançar uma vitória militar no Afeganistão mas que, no entanto, poderia receber um estatuto legal através de negociações…

A nova estratégia dos EUA no Afeganistão inclui a expansão de forças de autoridade para atacar terroristas. No entanto, Trump disse que os Estados Unidos não revelariam o número de tropas ou quaisquer futuros planos de ação militar no Afeganistão.

A vaga de atentados em janeiro de 2018 revela a falência dessas e anteriores estratégias e a liberdade de circulação dos Talibãs, da al-Qaeda e do Estado Islâmico.

Os objetivos geoestratégicos

Apesar de 16 anos de uma pesada presença dos EUA, a fim de estabelecer a sua hegemonia no Afeganistão e chegar além dele, a influência de potências regionais como a Rússia, China, Irã, Paquistão e a Índia está crescendo. No entanto, os EUA mantêm um papel desestabilizador na região, tendo em vista estabelecer um domínio imperial alargado em uma situação internacional onde já não têm a mesma capacidade de influência.

Essa estratégia tem girado em torno de variantes da chamada Doutrina Wolfowitz (subsecretário de Estado de George Bush pai), que visou “prevenir o surgimento de um poder regional ou global que pudesse desafiar o estatuto hegemónico único dos EUA” e a sua cavalgada até à China, para garantirem recursos energéticos e minerais que implicariam uma ocupação logística de uma vasta parte da Eurásia, com governos de fidelidade garantida.

Era um sonho louco, desmentido após as invasões do Iraque e do Afganistão, de várias “revoluções coloridas”, da introdução do “caos” como melhor forma de gerir o terrorismo, do narcotráfico, da exploração sem regras de petróleo e riquezas minerais. Evitar um trajeto comercial normal entre países, para deixa-los entregues a bandidos que fazem a administração desses imensos espaços, destruiu o Afeganistão e outros países, como a Líbia. Mas há fortes realidades que hoje pesam em sentido diferente desta cavalgada diabólica.

Dezasseis anos depois da guerra mais longa da sua história, os EUA no Afeganistão tomam atitudes que dependem mais do que entendem ser a necessidade de reagirem à derrota na Síria, podendo acrescentar também a do Iraque, onde hoje é significativa a influência da Rússia e do Irã, com a China mais distanciada, apesar dessa já estar fechando contratos com o Afeganistão.

Trump pode estar transformando essa guerra “em aberto” desde 2001 em uma guerra em termos qualitativos e quantitativos muito diferentes da dos seus antecessores na Casa Branca. Mas está limitado, pese embora a pressão do Pentágono para o aventureirismo sem medir consequências.

A CIA, os terroristas e o controle da heroína

Vale a pena lembrar aqui a história do comércio de drogas do Crescente Dourado, que está intimamente relacionado com as operações secretas da CIA na região desde a guerra contra os soviéticos e as consequências que isso teve.

Ate à revolução socialista a cultura do ópio (papoula) era vasta e controlada pelos ingleses. Depois da revolução, a produção de ópio foi proibida no Afeganistão e no Paquistão, e foi dirigida a pequenos mercados regionais. Não existia produção local de heroína (Alfred McCoy, “Drug Fallout: quarenta anos de cumplicidade da CIA no comércio de narcóticos”, The Progressive, 1/08/1997).

A economia afegã de narcóticos foi um projeto cuidadosamente preparado pela CIA, apoiado pela política externa dos EUA e intimamente relacionado com as operações secretas da CIA na região, desde a guerra contra os soviéticos.

Conforme revelado nos escândalos Irã-Contra e Bank of Commerce e Credit International (BCCI), as operações secretas da CIA em apoio aos Mujahideen afegãos foram financiadas através da lavagem de dinheiro da droga. O “dinheiro sujo” foi reciclado – através de várias instituições bancárias (no Oriente Médio), bem como através de empresas anônimas da CIA, com “dinheiro encoberto” usado para financiar vários grupos insurgentes durante a guerra contra os soviéticos.

Em “The Dirtiest Bank of All” pode ler-se que “os EUA queriam fornecer aos rebeldes Mujahideen no Afeganistão mísseis stinger e outros equipamentos militares”, e precisavam da cooperação total do Paquistão. Em meados da década de 1980, a estação da CIA em Islamabad era uma das maiores estações de inteligência dos EUA no mundo. A revista Time de 29/07/1991, a páginas 22, revelava que “os EUA se voltaram para o tráfico de heroína no Paquistão”, citando um oficial dos serviços secretos dos EUA.

O estudo do investigador Alfred McCoy confirmou que, depois da operação secreta da CIA no Afeganistão em 1979, “as fronteiras do Paquistão e o Afeganistão tornaram-se o maior produtor de heroína do mundo, fornecendo 60% da procura dos EUA. No Paquistão, a população viciada em heroína passou de quase zero em 1979 para 1,2 milhões em 1985, um aumento muito mais acentuado do que em qualquer outra nação”.

E que “os ativos da CIA controlaram novamente esse comércio de heroína. A medida que os guerrilheiros Mujahideen ocuparam território dentro do Afeganistão, pediram que os camponeses plantassem o ópio como um ‘imposto revolucionário’. Em toda a fronteira no Paquistão, líderes afegãos e grupos de bandidos locais, sob a proteção dos serviços secretos do Paquistão, faziam funcionar centenas de laboratórios de heroína. Durante esta década de 1979 a 1989 de tráfico aberto de drogas, a Agência de Controle de Drogas (DEA) dos EUA em Islamabad não levantou processos ou fez prisões”.

Continua McCoy: “funcionários dos EUA recusaram-se a investigar acusações de heroína por parte de seus aliados afegãos porque a política de narcóticos dos EUA no Afeganistão foi subordinada à guerra contra a influência soviética. Em 1995, o ex-diretor da CIA em operação no Afeganistão, Charles Cogan, admitiu que a CIA realmente sacrificou a guerra contra as drogas para fazer a Guerra Fria”.

As vastas reservas de minerais e gás natural do Afeganistão: a cereja em cima do bolo que os afegãos estão impedidos de comer

De acordo com um relatório conjunto do Pentágono, do U.S. Geological Survey (USGS) e a USAID, revelaram-se no Afeganistão em 2010 reservas de minerais “anteriormente desconhecidas” e inexploradas, estimadas na ordem dos mil milhões de dólares (“EUA identificam grandes riquezas minerais no Afeganistão”, New York Times, 14/06/2010; veja-se também a BBC, 14/06/2010): “os depósitos anteriormente desconhecidos – incluindo grandes veias de ferro, cobre, cobalto, ouro e metais para industrias críticos como o lítio – são tão grandes e incluem tantos minerais que são essenciais para a indústria moderna, que o Afeganistão poderia eventualmente ser transformado em um dos mais importantes centros mineralistas mundiais, acreditam os funcionários dos Estados Unidos”. 

Um memorando interno do Pentágono, por exemplo, afirma que o Afeganistão poderia tornar-se a “Arábia Saudita do lítio”, uma matéria-prima chave na fabricação de baterias para laptops e smartphones.

A vasta escala da riqueza mineral do Afeganistão foi descoberta por uma pequena equipe de funcionários do Pentágono e geólogos americanos. O governo afegão e o presidente Hamid Karzai foram posteriormente informados, segundo afirmaram autoridades americanas.

Embora possa levar muitos anos para desenvolver uma indústria de mineração, o potencial é tão grande que funcionários e executivos da indústria acreditam que isso poderia atrair investimentos pesados mesmo antes de as minas se tornarem lucrativas, proporcionando a possibilidade de empregos que acabassem com o estado de guerra.

O valor dos depósitos minerais recém-descobertos diminui o peso relativo da economia de guerra do Afeganistão, baseada em grande parte na produção de ópio e tráfico de narcóticos, e poderá abrir perspectivas para uma economia livre dessa atividade criminosa.

Regressemos ao título deste artigo: “Afeganistão, onde as pessoas parecem ser o que menos interessa”.