A IMPORTÂNCIA DO CASO SANTRICH PARA A ESQUERDA LATINO-AMERICANA

Ser revolucionário hoje tornou-se quase uma identidade de consumo. Muitos estão dispostos a compartilhar memes de Lenin, ou de outros vultos da revolução, com frases curtas, assim como suas mães fazem com Paulo Coelho, ou ainda dispostos a comprar em uma “loja de rock” uma camiseta bonita de Che Guevara. Parte da miséria que vivemos como esquerda no continente vem dessa pobreza que converteu nossos heróis em produtos de “feiras hipsters”. Cada  vez mais a militância de esquerda é fundamentada no consumo individual de certas tendências vendidas por um capitalismo identitarista que mantém a matriz econômica liberal intacta. E nessa linha individualista, ou desistem rapidamente, ou entram em depressão constantemente e se afastam aos poucos, ou ficam apenas compartilhando memes a todo momento numa espécie de “ativismo” meramente virtual e inócuo, pois as redes sem as ruas, sem a organização política, não contribuem para a luta de fato. Muito dos nossos desafios atuais passam por ultrapassar as aparências para refundar existencialmente uma ética e uma moral revolucionárias. E nisso reside a importância do caso Santrich.

Nascido no Caribe, desde muito jovem militou no Partido Comunista Colombiano e nos anos 90, no marco de um dos maiores massacres políticos do continente que deixou mais de 20.000 companheiros e companheiras mortos, ele decidiu ingressar nas FARC. Antes Seuxis Paucias, ele adota o nome de Jesús Santrich, que era seu amigo inestimável de festas e propaganda política e um dos assassinados neste genocídio político. Já na guerrilha, ele descobre que possui uma doença degenerativa que o deixaria cego. No lugar de se render, contando com o apoio de seus camaradas, ele seguiu na selva, exercendo trabalhos de pedagogia e construindo com a pintura, a música e a escrita, o horizonte de disputa simbólica da revolução.

Foi um dos principais negociadores dos acordos de paz, mas em seguida começou a se apresentar como uma das vozes mais críticas e desconfiadas dos interesses das elites dominantes colombianas nesse processo. No meio de descumprimentos categóricos aos acordos, Jesús Santrich é o único comandante a se solidarizar com os membros da já antiga guerrilha que ainda estão na prisão. Ele fez uma longa greve de fome que obrigou o governo a se posicionar. Esses elementos começaram a desenhá-lo como figura particular no cenário político colombiano, pois muitas referências alternativas, inclusive dentro dos ex-guerrilheiros, passaram a utilizar um discurso de consenso com a direita, tentando ser o menos combativo possível, em nome de uma “unidade pela paz”. Santrich se torna a voz dissonante, pois estabelece que a unidade e a amplitude sempre serão necessárias, mas se for a custa de princípios e dos direitos dos mais pobres não é outra coisa senão “perfídia”. E as FARC não nasceram para trair o povo colombiano.

Diante de suas críticas e posições públicas, o governo colombiano, submisso ao imperialismo ianque, decidiu montar uma armadilha contra ele. Jesús era um dos responsáveis pelas FARC para receber propostas de projetos produtivos relacionados à reincorporação civil de ex-guerrilheiros e de ex-guerrilheiras. Em um desses encontros para organizar projetos de reinserção social dos camaradas, dois agentes da DEA (Departamento de Justiça do Governo dos Estados Unidos para o “combate ao narcotráfico”) se infiltraram, gravaram uma conversa falando sobre um desses projetos e compraram um sobrinho de um membro influente das FARC para que se convertesse em testemunha acusatória de que essa conversa teria sido sobre venda de drogas. Utilizando dessa desculpa, se tentou extraditar Santrich aos Estados Unidos. Como reação imediata, Jesús Santrich decidiu morrer em solo colombiano, promovendo uma greve de fome para não ser extraditado. Isso ajudou para que diversos comitês de direitos humanos pudessem pressionar por um julgamento justo e de acordo com o que estava planejado na Justiça Especial para a Paz (JEP), órgão criado para julgar os anistiados da guerrilha colombiana. Com a greve de fome, Santrich conseguiu que seu caso começasse a ser julgado por esse tribunal especial de transição (JEP).

Finalmente, no mês de maio deste ano, 1 ano depois de ser preso para fins de extradição, a JEP decretou o óbvio, que as provas contra Santrich são insuficientes, e que sua liberdade deveria ser restabelecida. Porém, em um show midiático, os lacaios do atual governo colombiano, de ultra-direita, criaram uma nova ordem de captura e prenderam novamente Santrich. No meio da tensão, chegou-se a pensar que o presidente colombiano, criado pelo carrasco Álvaro Uribe (ex-presidente sanguinário), decretaria um “Estado de Exceção” para extraditar Jesús Santrich. Convicto de não abandonar seu país, Jesus responde cortando os seus pulsos para não ser extraditado. Por sorte, acabou sobrevivendo, e agora, uma semana depois, no último dia 30, Santrich foi, enfim, libertado. Foi a primeira vez na história da Colômbia que se conseguiu vetar uma extradição para os Estados Unidos. Talvez seja a primeira vitória política dos revolucionários das FARC no período recente de “pacificação”.

As lições do caso Santrich são fundamentais para os dilemas que passam no conjunto da esquerda de todo o continente latino-americano. Jesús Santrich ensina a importância da palavra “dignidade”. Um revolucionário tem que ser alegre, gozar da vida, entender que o mundo, por mais desigual e problemático que seja, depende também da nossa capacidade de converter a revolução em uma festa dos oprimidos. Como uma vez ele me escreveu desde a prisão,  “eu não gostaria de viver num mundo com justiça social, mas monótono e chato”. Porém, parte desta vitalidade do revolucionário passa por conhecer seus inimigos, conhecer os sonhos que são irrenunciáveis para criar essa grande alegria transformadora de mundos e não abandoná-la, custe o que custar. Para vencer, tem que saber as condições em que um fato se define como vitória. Eleições, cargos, postos acadêmicos, posições de destaque social, e outros aparatos da lógica da ordem burguesa, se nos são dado sob a condição de que deixemos de ser quem existencialmente somos, são vitórias dos inimigos que nos assimilaram, não são vitórias nossas. A dignidade de poder sorrir com todas as adversidades em que se vive, deixar claro qual é a luta e definir as condições do jogo, isso é irrenunciável. Não renunciar jamais dos princípios que sustentam a luta revolucionária. Esses são os ensinamentos de Jesús Santrich em sua luta pela liberdade.

E como dizia o Comandante Marighella: “Revolução é sacrifício. Tenhamos decisão. Mesmo que seja enfrentando a morte. Porque para viver com dignidade, para conquistar o poder para o povo, para viver em liberdade, construir o socialismo, o progresso, vale mais a disposição de ir até ao sacrifício da vida.

Santrich é um símbolo da continuidade do justo combate iniciado por Manuel Marulanda Vélez, é uma marca de que a espada de Bolívar segue afiada pela libertação dos povos da América Latina.

João Gabriel Almeida é membro da Secretaria de Relações Internacionais da Organização A Marighella – CPR, reside na Colômbia, colabora com as FARC, e é amigo de Jesús Santrich