Bolsonaro e o nacionalismo às avessas: as manobras erráticas por detrás dos atritos com a França

Por Tiago Soares Nogara: mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília.

A cobiça estrangeira sobre o território amazônico não é uma novidade. Desde os tempos coloniais, portugueses moviam-se contrários às incursões francesas, inglesas e holandesas ao norte do território que viria a constituir o Brasil. Ao longo das décadas em que, já independentes, tratamos de ocupar e delimitar nosso território, não faltaram reveses – como a perda de importante porção do território para a Guiana britânica, fruto de arbitragem internacional de Vitor Emmanuel III, rei italiano -, mas tampouco grandes vitórias, construídas a partir do artifício da negociação, ainda que sem imiscuir-se, quando necessário, do uso da força. Foram essas mediações, e as respectivas estratégias políticas adotadas pelos negociadores, que permitiram ao Brasil deter hoje o imenso patrimônio ecológico, territorial, econômico e cultural fruto da ocupação de imensa parte da Amazônia.

Ainda assim, a cobiça nunca deixou de existir: antes com missionários e entidades geográficas, as potências estrangeiras passaram a valer-se de ONGs, fundações e movimentos sociais fantoches para atingir seus objetivos. Dessa forma, aludem ao congelamento das atividades econômicas em zonas que possam vir a ser importantes para seus domínios futuros, ao tempo em que designam, multilateralmente, os países subdesenvolvidos como grandes causadores dos fenômenos vinculados ao aquecimento global e demais mazelas ambientais. À época da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano – Conferência de Estocolmo, de 1972 -, o Brasil preferiu rechaçar toda e qualquer apologia favorável à verborragia ambientalista e neomalthusiana propagada pelos países desenvolvidos, aludindo à prioridade do país em manter-se no caminho da superação do subdesenvolvimento.

No entanto, as conjunturas não são estáticas, e se num primeiro momento a atitude refratária pode parecer inteligente, num segundo pode levar à um isolamento político que corrobore com derrotas contundentes perante os interesses alienígenas que pairam sobre parte de nosso território. Assim, desde a década de 1990, nossa diplomacia tem sido profícua em adaptar a abordagem do país acerca das temáticas ambientais, nos engajando nos debates multilaterais e ensejando a priorização da transferência de tecnologias dos países desenvolvidos aos subdesenvolvidos, valendo-se do conceito de desenvolvimento sustentável. Ainda que com atitudes vacilantes perante a atuação de ONGs em território nacional, bem como em processos de demarcação de terras alheios aos interesses do desenvolvimento do país, o Brasil soube manter-se ativo nas principais formulações internacionais acerca das questões ambientais, evitando formações de coalizões que viessem a questionar nossa soberania sobre o território amazônico.

Com o advento da eleição de Jair Bolsonaro, o discurso nacionalista com relação à Amazônia não foi resgatado, afinal nunca deixou de figurar na estratégia de inserção internacional do país, mas maximizado em prol da costura de alianças políticas internas, principalmente com determinados setores das Forças Armadas. Desde então, países historicamente sedentos pelo debate acerca da internacionalização da Amazônia encontraram brecha para retomar a ofensiva, criticando abertamente a flexibilização de mecanismos regulatórios, por parte do governo brasileiro, no que tange ao aproveitamento da área. A proliferação de queimadas no território amazônico, seguida pela recorrente utilização, por parte do presidente, de menções refratárias aos regimes multilaterais vinculados às temáticas ambientais, e de rechaço aos interesses escusos por detrás do altruísmo ambientalista das potências estrangeiras, ampliou esta margem de manobra, que permitiu a retomada, na arena internacional, de questionamentos acerca da maneira como o Brasil gere esse seu importante ativo.

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No auge das acusações estrangeiras à suposta má gestão brasileira, Bolsonaro trocou farpas, abertamente, com o presidente francês Emmanuel Macron, chegando a ofender a primeira-dama francesa em seu Twitter. Mais recentemente, no último dia 7 de fevereiro de 2020, foram vazados documentos secretos do Ministério da Defesa, vinculados à elaboração de cenários prospectivos de conflitos envolvendo o Brasil até o ano de 2040. Neste, constava a hipótese de guerra com a França, aludindo às disputas pelo território amazônico, aprofundando as já resilientes conturbações com os franceses, que responderam ao vazamento com uma nota oficial em tom irônico. Ainda que, num primeiro momento, o reforço dessa discursividade abertamente nacionalista e hostil aos interesses escusos das grandes potências possa sugerir uma tentativa de resguardar pontos centrais da soberania nacional, na verdade mais contribuem para aprofundar as iniciativas daqueles que visam questioná-la, além de debilitar importantes parcerias brasileiras no ambiente internacional.

Vale recordar: a França é crucial parceira do Brasil, com o qual estabeleceu Parceria Estratégica em 2006, colaborando diretamente no desenvolvimento de projetos vinculados com o reequipamento de nossas Forças Armadas. Grande parte das aeronaves de nossa Força Aérea são de origem francesa, principalmente os helicópteros. Desde 2008, Brasil e França desenvolvem conjuntamente o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), a partir do qual os franceses transferem tecnologia para a produção de submarinos no Brasil, inclusive do tão sonhado submarino nuclear. A concertação de acordos de cooperação dessa natureza não é uma questão simples, afinal poucas são as potências dispostas a repassar tão importante e restrita tecnologia, o que enseja o grau de confiança que possuíam, até então, as relações entre ambos os países. Um aprofundamento das escaramuças entre Brasil e França tende a debilitar, portanto, os próprios anseios brasileiros em reforçar seu poder dissuasório, essencial para toda e qualquer iniciativa alinhada à manutenção de nossa soberania.

À época da incorporação do Acre ao Brasil, em 1903, o Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, foi hábil ao combinar elementos dissuasórios, enviando tropas ao território, com capacidade política e de negociação, isolando o Bolivian Syndicate das conversações e estabelecendo elos diretos com o governo boliviano. Passado mais de um século, supostos nacionalistas enrijecem o discurso da soberania brasileira sobre o território amazônico e de contrariedade aos interesses das grandes potências internacionais na região. No entanto, olvidam princípios basilares tanto da política, ao isolarem-se na arena internacional e abrirem margem para o fortalecimento das proposições de seus adversários, quanto da dissuasão, ameaçando as relações com importante parceiro das iniciativas de robustecimento das Forças Armadas brasileiras.

Atentando contra os interesses nacionais, as manobras erráticas do governo Bolsonaro mantêm o nacionalismo enquanto vetor meramente retórico, dilapidando um patrimônio político e diplomático construído pelo árduo trabalho de nossas lideranças ao longo de inúmeras décadas. Após o passar da tempestade, restará à nação recompor suas históricas orientações em prol da solução pacífica de controvérsias, do multilateralismo e de nosso desenvolvimento econômico, político e social, hoje cada dia mais distantes.